Em defesa do património religioso 

– agir é preciso... E depressa!

Foi há um par de anos. Entrei na loja de uns missionários em Fátima, uma das maiores do centro da localidade. Falando com um familiar de uma peça de arte sacra antiga a precisar de conservação competente (hoje felizmente bem restaurada, com critérios éticos e científicos), fui prontamente interpelado pela empregada do estabelecimento. Solícita, sem grande noção das conveniências, interrompeu a conversa e atirou, de arrancada: “Se quiser, temos um senhor muito jeitoso que a põe como nova...”
Percebi que a senhora me confundira com um sacerdote. Fiquei estupefacto, respondi de forma evasiva, mas fiquei a pensar: “Quem resiste a estas abordagens se não tiver ética, educação, juízo, pudor ou um bispo com mão de ferro e sabedoria de um diplomata? Quem?”
Multiplicam-se pelo nosso país casos de raspagem e repinte de esculturas e retábulos das nossas paróquias, de vandalismo aplicado a telas, tábuas e pinturas murais centenárias. São peças importantes do património espiritual dos crentes e, também, elementos inalienáveis da nossa memória coletiva. São obras de arte e criações inspiradas e, como tal, merecem o mais escrupuloso respeito. Outra coisa não diz, aliás, o Direito Canónico. A situação a que chegámos é todavia muito grave, mesmo que vejamos alguns exemplos de boas práticas, pontuais e minoritários, que não escondem a “selva” que por aí vai, do Algarve ao Alto Minho, com exemplos recentes de perigoso retrocesso.
Enquanto tivermos como fiéis depositários do património religioso pessoas que, à parte a sua competência pastoral, revelam (como autarcas deslumbrados ou construtores civis siderados) uma ânsia incontrolável, querendo “deixar obra” construída, esculpida ou pintada a todo o custo, continuaremos a assistir atónitos à destruição do nosso património artístico e espiritual. Enquanto se manifestar um insaciável voluntarismo que olha para as obras de arte como objectos utilitários sem valor intrínseco e não como manifestações materiais, visíveis, de Deus connosco, continuaremos a testemunhar um vandalismo cujos agentes, ainda por cima, se apresentam com ares de esteticistas ou maquilhadoras de bairro pobre. Enquanto quem de direito não agir com rapidez, ciência e firmeza, parando os desmandos que violam as leis do País e o Código do Direito Canónico, ou deixando mesmo de colaborar com eles, continuaremos a multiplicar os lamentos por um património perdido, quiçá para sempre.
Não será tempo de todos nós – investigadores, conservadores-restauradores, museólogos, amantes da arte, sacerdotes com sabedoria, fiéis com ética e estética, simples amantes do património – fazermos algo além dos simples comentários no “feicebuque”? Se o não fizermos, talvez seja tarde. E não valerá a pena tecermos mais tarde um rol de lamentações.

Artigo publicado nos jornais "Diário do Alentejo" (Beja), "Alto Alentejo" (Portalegre) e "Raio de Luz" (Sesimbra).



Está pronta a nova publicação sobre o concelho de Aljezur:

NOTAS SOBRE A HISTÓRIA
DA IGREJA MATRIZ DE ODESSEIXE

separata do nº. 6 da revista "Al-Rihana"

 
 
NOTA HISTÓRICA
SOBRE A PARÓQUIA DE ALJEZUR

por Ruy Ventura

 

Há muitos séculos que a vida religiosa de Aljezur está centrada na figura da mãe de Jesus de Nazaré, aqui invocada com o título muito raro de Santa Maria d’ Alva ou Nossa Senhora d’ Alva. As origens etimológicas do termo “Alva”, a toponímia da região, a lenda justificativa do nome da santa e a sua religiosidade popular, associados ao envolvimento histórico-antropológico do concelho, indicam que na base da invocação mariana estão cultos muito antigos, com origem oriental.

A paróquia terá sido instituída após a integração de Aljezur no reino cristão de Portugal – ocorrida por volta de 1249, após uma rendição pacífica dos habitantes desta parte do barlavento do Algarve às tropas do mestre da Ordem de Sant’ Iago da Espada (D. Paio Peres Correia). É muito provável que a primitiva igreja matriz tenha resultado da adaptação ao rito católico gregoriano da anterior mesquita islâmica da localidade. Na Idade Média, o seu território era coincidente com a totalidade do vasto município então fundado: da ribeira de Seixe às alturas da Serra do Espinhaço de Cão e das escarpas do litoral atlântico ao cume da Fóia de Monchique.

Integrada em 1297 nos domínios santiaguistas, como sede de uma rica comenda, essa igreja – situada a curta distância do castelo, na parte cimeira de uma elevação importante – subsistiu até 1755. Nessa data, um violento terramoto lançou-a por terra, deixando de pé apenas a capela-mor. Entre uma e outra data, houve várias reformas e reconstruções no edifício. Entre elas destacam-se as ocorridas na época manuelina (entre 1515 e 1518), no período filipino (cerca de 1612/1613) e no reinado de D. João V (1725). De todas elas restam ainda vestígios que se podem observar no Museu Municipal e na actual matriz. No terramoto de 1755 pereceram ainda as ermidas de São Sebastião (do século XVI) e de São Pedro (medieval).

Entre 1755 e 1809, a sede da paróquia de Nossa Senhora d’ Alva transitou por vários templos de pequenas dimensões, todos insatisfatórios para as necessidades do culto religioso. Primeiro na ermida de Santo António (1755-1757), depois na capela do hospital do Espírito Santo (1758-1790) e, por fim, na igreja da Misericórdia (1790-1809), que mesmo depois dessa data teve frequentemente a função de matriz complementar.

Só por volta de 1792, graças à decisão e aos esforços do bispo do Algarve, se iniciou a construção de uma nova igreja matriz, num cabeço situado a nascente da vila velha, denominado “Barrada” ou “Sílio”. O novo templo, com uma volumetria monumental precedida por uma escadaria, foi construído com os contributos de D. Francisco Gomes do Avelar, do Marquês de Angeja (comendador de Aljezur) e da população, a partir de um risco atribuído ao arquitecto Francisco Xavier Fabri. A sua sagração ocorreu em Setembro de 1809.

(Nesse ano se procedeu à profanação de outras igrejas da povoação ainda abertas ao culto: Espírito Santo (fundada entre 1490 e 1517, sobre o hospital onde descansavam os peregrinos que, do sul, seguiam para Santiago de Compostela), Santo António (edificada na década de 1630) e Santa Susana (situada a três quilómetros a sul da vila). Permaneceu até hoje com culto regular o templo da irmandade da Misericórdia, edificado na década de 70 do século XVI.)

Trata-se de um edifício situado, estilisticamente, na transição entre o Barroco e o Neoclássico. Tem capela-mor profunda, duas capelas colaterais, transepto e três naves (sendo a central mais alta e mais larga) onde existem mais duas capelas. O retábulo principal tem sido atribuído ao farense José da Costa, a partir de um risco do arquitecto da igreja. Nele se venera uma escultura imponente da padroeira, obra de um seguidor de José de Almeida ou da oficina de Machado de Castro. Na capela do Santíssimo conserva-se o sacrário barroco da antiga matriz, talvez obra do entalhador portimonense Manuel Martins. Na das Almas existe um retábulo maneirista a representar a coroação da Virgem e a Salvação das Almas do Purgatório. As capelas restantes têm elementos provenientes do convento franciscano do Desterro, em Monchique, aí colocados em 1846. Na capela de São Sebastião expõem-se os crânios de João Galego e Pedro Galego, pai e filho, venerados desde o século XVI.

A igreja nova da Senhora d’ Alva permaneceu isolada durante várias décadas. Com relutância a população correspondeu ao desejo do prelado algarbiense, que sempre desejou criar junto da matriz refundada uma nova povoação. Só na segunda metade do século XX a maior parte da população se transferiu para o lugar da “Igreja Nova” (assim designado já em 1828), esvaziando progressivamente as casas da vila medieval.

 

(Mais informações podem ser lidas no livro “Memória d’ Alva – Contributos para uma Biografia da Igreja Matriz de Aljezur”, de Ruy Ventura, à venda na igreja paroquial.)
Vista do conjunto retabular.

Retábulo-mor.

Arco da capela-mor em talha policromada (1746).

Retábulo de Nossa Senhora do Rosário.

Retábulo do Senhor Jesus.

Bordeira (Aljezur):
retábulos da igreja de Nossa Senhora da Encarnação.
(RV, Agosto/2011).


Carrapateira (Bordeira, Aljezur):
retábulo da igreja de Nossa Senhora da Conceição.
(RV, Agosto / 2011)
SOBRE O TOPÓNIMO “CARRAPATEIRA”
(um apontamento)

O topónimo “Carrapateira” (CMP 592), atribuído a um aldeia da freguesia da Bordeira (concelho de Aljezur), pertence a um grupo de designações antigas, abundantes em todo o país, relacionadas com nascentes e/ou pontos de abastecimento de água.
Trata-se de um nome com origem semita, nascido de falares fenícios/cartagineses, utilizados na Península Ibérica pelo menos entre a Primeira Idade do Ferro e a Romanização. Parecem-me plausíveis três hipóteses explicativas, tendo em conta a existência na aldeia de um poço/fonte, hoje entulhado, do qual se diz ter escondido um tesouro:
1. QR PTR – “fonte que corre”, “fonte que sai de uma fenda ou de uma racha” ou “fonte pública”;
2. QR PT HR – “fonte que rejuvenesce no monte” ou “fonte onde se namora no monte”;
3. QR PT OR – “fonte que rejuvenesce na povoação” ou “fonte onde se namora na povoação”.
Perante estas hipóteses, há que estudar mais aprofundadamente o local e as tradições orais que o envolvem, de modo a solidificar as explicações. Da sua leitura, podemos apenas ter a certeza que “Carrapateira” tem relação com uma fonte; não sabemos, contudo, se o termo se refere a uma característica da nascente ou à sua localização no sopé do monte ou já no interior de uma povoação proto-histórica.
Pertencem à mesma família os topónimos aljezurenses “Carriagem” e “Fonte da Coropita” (Aljezur, perto do castelo).


BIBLIOGRAFIA
Espírito Santo, Moisés (s/d) – Dicionário Fenício – Português. Lisboa, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões – Universidade Nova de Lisboa: 128, 200, 207, 210 e 216.